o amor está

(Texto originalmente publicado no Jornal de Leiria edição de 12 de Julho: https://www.jornaldeleiria.pt/opiniao/o-amor-esta-10463)

O Amor está nas palavras imprecavidas que deixaste sair quando comentavas algo sem muito sentido ou objectivo. O Amor saiu assim, fugaz na temperança e amigo da boa compreensão. Natural e desobstinada, combatendo a fraqueza de espírito da intolerância ao sentimento que amiúde percorre o púlpito orgânico de quem não quer viver, essa palavra saiu assim. Dita por ti ou na esperança que fosses tu que a dissesses, porque eu a ouvi e assim cri. Era uma generalidade que se aplicou ao que eu quis, que tu quiseste dizer. Uma frase que traduzia numa só palavra. Era só assim, uma palavra.

O Amor está no gesto de te debruçares para me dares aquilo que queres dar. Está na forma que deste ao teu corpo para me dares essa palavra, carregada de gestos deificados por mim, como só um mortal atribui o belo ao divino na esperança de o guardar num lugar longe dos outros, só seu. Tenho como o meu divino as tuas mãos a examinarem as minhas, perscrutando a longevidade que transcorre das linhas que nunca soubeste ler. Essas vão dar a algum lado. Ao completar dos gestos que te ocorrem dar, permeando com a lentidão espontânea de quem quer que o momento não acabe.

O Amor está no olhar que me cegou. Vi, com franqueza incrédula, o que tu viste. O nosso olhar não acabava no rosto de cada um mas no meio, num ponto que criamos para ser nosso. Num plano que surgiu daí, com a imprevisibilidade geométrica de uma ortogonalidade sentida, fizemos o desenho daquilo que vimos. E gostámos. Gostámos que o olhar tivesse visto, que tivéssemos criado o plano, e que nele tivéssemos desenhado. Nunca te disse isto, nem preciso. Mas esse olhar que me cegou fez-me ver para além do espelho em que te vês e eu me vejo. Fez-me perceber que um círculo é uma elipse nos teus olhos.

O Amor está no ar de quem o respira, chamando a si a vida a cada inspiração. Nesse ar carregado de ofegantes sons, surge o suspiro de uma assustada tomada de posição. Deixar que o ar me inebrie com a sua brisa.

memoribilia

Estive a rever um texto que tinha encontrado há uns tempos na net sobre Fernando Pessoa.  Para além de ser um registo do reconhecimento que Fernando Pessoa tem no estrangeiro a notícia publicitava o leilão da correspondência que mantinha com Aleister Crowley.  O diálogo era sobre um assunto do interesse de ambos. O ocultismo. A passagem das cartas para as mão de privado e a perca do património levanta questões de interesse nacional de que o artigo tratava.

Imagino num futuro serem fruto de cobiça de colecionadores todo o tipo de  twitt’s e status de facebooks e posts em blogs produzidos por personagens marcantes da história. Cada pedacinho de informação que essa pessoa possa ter deixado para traz a ser mitificada e reconhecida. Ainda é cedo para ver os efeitos,  talvez só quando o meio de comunicação se tornar obsoleto é que vão ter valor suficiente para poder suscitar interesse nalguém. Como os Lp’s, assumirão um papel de parafernália nostálgica? Relembrando-nos daquilo que foi o passado e como foi registado. Contudo, prevejo que nunca assumirão o valor que uma carta tem. Um pedaço de papel que foi escrito por um determinado indivíduo, numa hora exacta, acerca de tal assunto e que secalhar nunca ninguém mais soube vale mais do que um mail. Quer dizer, tem de valer. Guardavam-se cartas guardando cada pedacinho de comunicação que houve, muitas das vezes por apenas duas pessoas. Agora parece parvo guardar sms’s de uma pessoa querida, ao ponto que aquelas histórias amor vividas num tempo passado eram muitas vezes acentuadas pelo valor simbólico de um pacote de cartas que perpetuava uma relação dolorosa, passada há distância, vivida apenas ali, naqueles pedaços de papel. Todo o melodrama da carta resume-se, hoje, ao dilema de enfrentar um aviso de “s/ espaço para mensagens” e ficar sem saber se alguma das mensagens era importante quando se carregou no “apagar todas as mensagens lidas”. A Nokia simplifica às vezes.  Porém existem substitutos elegíveis a este guardar de recordações.

Quem não tem guardado um bilhete de um concerto que gostou muito? Talvez até só uma t-shirt com o nome do cantor.. Tenho muitos bilhetes de concertos a que fui, posters de exposições que vi e postais guardados. Coisas que vivi. Registadas ali, naquele pedaço de papel. Em tempos colava tudo na parede do meu quarto nas Caldas. No final do ano pude ver o que vivi, e guardar as memórias visualmente. Quase todos os acontecimentos tinham um referente que se traduzia num haste de uns óculos de carnaval ou no poster de uma das festas da escola. O espaço por nós vivido e ocupado grava as nossas memória através dos objectos que vamos colecionando?

Quem não viu a Amelie e não achou terna a cruzada de uma doce jovem empenhada em encontrar um senhor para restituir aquilo que mais significava para ele. Objectos que guardavam a memória da sua vida.

Ainda hoje se colecionam objectos.  Mas parece que, ainda, se escolhem sobretudo referências físicas, coisas que nos agarram ao nosso percurso e que existem mesmo. Poderão ter vivências digitais ser guardadas para a eternidade e obterem o mesmo valor simbólico que hoje em dia objectos físicos têm?